Abstinência.


Antes era só o saciar, a ânsia não passava do desejo e da futilidade. A vontade deveria ser apenas momentânea, mas naquela hora a experiência se calara, cedera espaço à coragem e aos momentos que corriam marcando cada toque dele com hematomas violentos em sua memória.

Era notório para qualquer um como seria o final daquilo; e a partir do momento em que fincou os pés lá, ela também percebeu que acabaria em um mal acabado. A droga da qual seria, a partir daquele momento, dependente. A saudade não é nada além de uma prova de que o passado valeu a pena. O passado que desapareceu, que passou correndo por eles, se esquivando de tudo que fosse palpável.

Ao menor deslize, os sentimentos que deveriam ser ministrados em doses homeopáticas bobeavam em seu sangue procurando por mais daquilo que abastecia seu corpo.

"Talvez beijo na boca seja menos íntimo que andar de mãos dadas."*

A droga lhe trouxe a calma, mas a cura tornou-se o próprio veneno, enfraquecendo e viciando qualquer organismo que tentasse se defender naquele momento. Ela não tinha mais forças para reagir ao vício, apenas sentiria em doses e mais doses, a entorpecência.

Noite após noite... aquele gosto amargo da ressaca ainda teimava em queimar sua memória. A abstinência ainda lhe causava calafrios enquanto acordava e via que era apenas mais um dia de tantos outros que ainda viriam vazios. O tempo não vinha cumprindo com seu dever; o relógio que ficou, agora já corria naturalmente, contando cada segundo de agonia, enquanto as horas do dia corriam cada vez mais devagar para ela, não apagando o que aconteceu; não saciando a necessidade.

Princípio de reabilitação de dependentes químicos: É necessário querer estar limpo.


Bem na última hora.

A sensação é sempre a mesma: o medo da covardia.

A ânsia não ia ajudar em nada agora, enquanto ela via tudo aquilo passar e deixar os nacos pelo caminho, contando o tempo que insistia em passar rápido demais... Last day.

Quisera poder fazer as horas acompanharem os ponteiros daquele relógio parado que ficou. Queria que o tilintar dos copos, da cordialidade do brinde, fizessem mesmo algum sentido.

"À sua volta." Fingindo não ser aquela a última vez.

"Ainda é muito surreal". Surreal que aquilo tudo tenha acontecido de uma só vez, a maneira na qual se olhavam era irresponsável demais.  Lealdade. Companheirismo. Intensidade.

O jeito como tudo aconteceu não era comum. Nem pareciam todos estranhos... tudo corria tão natural que ela nem percebeu que aqueles não eram seus amigos, mas os dele. Tudo tão incomum. A falta de tudo que aconteceu num espaço de tempo tão curto trouxe consigo sensações que nem ela saberia explicar.

Alívio e frustração por saber que o tempo fará, mais uma vez, o trabalho sujo.
O medo da falta e tudo que ela ainda pode deixar ficar...
Alegria e tristeza pela saudade.
Insanidade.

Um sentimento: distância.

A Cura


O Sol que entrava pela cortina incomodava seus olhos, mesmo que eles ainda estivessem fechados. O cheiro das flores já murchas, lhe causava náusea, a fazendo lembrar aos poucos o que havia acontecido.

Algo mais do que só mãos, lhe segurava ali, tentando mostrar que ainda não era a hora, implorando para que reagisse. O aperto firme umedecia seus dedos. Suor e lágrimas.

As faixas nos seus pulsos pesavam em sua memória. A causa dos seus ferimentos era o que lhe prendia; era o que tirava o peso dos seus olhos, fazendo-os abrir para provar a si mesma que aquilo tudo não era ilusão. Os raios que antes feriam seus olhos, agora contornavam o corpo a sua frente, esculpindo na sobra, uma áurea clara.

A sua miragem tinha os olhos fixos nos seus, como se ao menor movimento tudo pudesse acabar sem ter, certamente, um fim. As lágrimas corriam pelo seu rosto ao ver que ele estava realmente ali, lhe segurando como se pudesse mantê-la acordada por mais tempo. Aquela era a cura para todo hematoma emocional, mas os cortes haviam deixado seu corpo frágil demais. O sangue era insuficiente para deixá-la ter mais uma chance, mas corria sob suas veias a medida que ele se aproximava.

O cheiro da vela que queimava, agora a deixava entorpecida enquanto sua pressão subia. Seu último suspiro foi interrompido pela boca aparentemente quente. Um último beijo enquanto ela sentia seu coração pulsar mais lento, batidas antes de desfalecer e nos braços dele não mais acordar.

Ele: antídoto e veneno.

Rascunho:

Ontem (?)

Distorção do pensamento. O que passou e se esvaiu...

"Atitudes. Porque palavras o vento leva."

Antes de ontem, mês passado... ano passado. Passado.

Eu, eu, eu, eu, eu. Construcionismo.

Altruísmo. [risos]

Deixar o passado pra depois.
"Quem dera tenha sido."*
Epítome: nada.

"liberdade é tanta, que SUFOCA."*

Vivendo a distancia da vista alheia...

Tentando entender como funcionam os pensamentos que parecem acéfalos. O caminho trilhado foi o errado: rodeado de pedras, tropeços e quedas. Como as feridas abertas das crianças que correm tão livres, inconscientes do que vem depois. Dedos e joelhos cortados, mas livres.

Inconscientemente 'não'... inconsequentemente de mãos dadas, entrelaçados... de mãos atadas. Sorrindo incontrolavelmente da beleza dita em forma de problemas, decisões tomadas na obscenidade da cama desprovida do preenchimento desejado e recusado.

Feliz e acabado por não pôr um fim, e também não ser sim, por ser por acaso, apenas por ocasião.

Ambos lados desonestos, fazendo das palavras medidas injurias imensuráveis, fazendo da vida um jogo onde os parceiros vivem numa competição em que ninguém ganha.

E um observador esperando, escutando; pesando e medindo palavras, frases, sons e tons...

Nada demais.

Entregando os pontos...

E na verdade sempre ficou muito claro que esse seria o desfecho da estória. E até houve a cena de aplauso, aquela do beijo... mas os aplausos sempre se calam nos piores momentos e agora não fazem mais nenhum som. Esperar não faz sentido. Pelo que? Por quê? Por quem?

"Quando os créditos subirem, por favor, quero meu nome em primeiro plano, em letras garrafais. Para minha personagem, quero um nome real, quero lembrar de tudo que eu fiz e refiz, quero não correr mais o risco de errar de novo. Para a representação dele... eu quero o vazio e o medo."

Sem motivos, só por decisão...

"Eu estou desistindo".

E se preferir, retire as aspas.

"Esse vazio pode ser fome".

Por cada gesto, por cada palavra. Apaixonar-se sem motivos nem porquês, só por sentir.

Falar bobagem, brincar de ser alguém...

Revelar tudo, relevar... irrelevar. Contar segredos, descontar bobagens. Contar mil vezes até dez antes de estourar, brincar de briga... brigar de verdade, só por brigar.

Sempre o mesmo ciclo... ainda mais clichês.

Existe uma linha imaginária entre o gostar e o deixar. E há um único momento, sem volta, no qual se pode escolher se entregar ou abandonar.

Foi a escolha certa?

"E a historia que
Nem passou por nós
Direito ainda
Pr'onde é que foi?"*

Se esvai.

E quando tudo parecia está tomando finalmente um rumo. Quando tudo aquilo parecia surtir algum efeito... eis que aparece esse turbilhão de novos conceitos. Caminhos diferentes e que talvez levem a um lugar mais brando, mais simples.

A angustia que antes "parecia nunca não passar"*.

A luta que parecia jamais terminar... todos os jogos. Todas as dúvidas.

Ela podia ver a diluição de todas aquelas desconfianças na simplicidade tão límpida... naquela voz tão mais próxima. A vontade que agora se dissolvia com todas aquelas lembranças pensadas e repensadas.

A dúvida.

Eis a questão.

"Digamos, complicado".

O direto e o indireto...

E bem que um dia contaram a ela: "Isso é o que aniquila qualquer sentido racional que exista na necessidade de viver". É bem verdade que às vezes faz tudo parecer meio magenta. O perfeito e o imperfeito. Faz da vontade, uma necessidade, das mentiras, apenas meias verdades, e da tortura, falsidade.

Incompatibilidade...

Cada gesto frágil se transformando em monstruoso; a personificação: O Medo e A Coragem. O gênero e o grau.

It's advisable not begin again.

Definitivamente é a maneira mais sensata de se terminar um assunto.

"Concorde...
O que você mais gosta é não deixar resposta
E eu fico sempre a me perguntar"*

90 mais acréscimos...

Hastear a bandeira, vestir o uniforme...

O coração que pulsa sob o escudo e pára para ouvir cada lance... cada segundo mais próximo do fim. Mãos trêmulas... o nó da garganta já chegou aos olhos.

Paixão que não se explica.

"Mesmo que a bola não entre", mesmo que o grito se cale. Mesmo que a lágrima corra. Mesmo que cheguem os 45 do segundo tempo, mesmo que acabem todas as prorrogações...

Paixão que não se explica, paixão que não de mede.
Jamais calará...

Ecoa na garganta... Vermelho de luta!

Diagnose


"Você sofre de um quadro crítico de Esclerose Múltipla". Dizia o médico enquanto olhava o prognóstico...


"O paciente encontra-se em estado avançado de cegueira em diversos aspectos". O pós-escrito da receita do médico anterior se dirigia ao próximo doutor que examinasse aquele paciente, de repente bastante apreensivo.

Horas antes haviam começado a consulta e logo o doutor percebeu os sintomas: falta de visão e problemas de coordenação motora, o que só que confirmava o quadro de EM; porém não encontrava explicação para os suores, a insônia e a taquicardia.

A inconstância, a aflição. O paciente lhe falava de coisas que de repente mudavam de significado... uma hora era feliz, outrora era só raiva... oscilava entre a dúvida e a certeza, entre o querer e a repulsa. Aquilo ali não fazia sentido.

Diagnosticou a doença lhe entregando uma nova receita e mais um pós-escrito dirigido ao próximo médico.

"O paciente sofre de Esclerose Múltipa e em alguns momentos nota-se um quadro de distimia".

Antes o sonho...

Acordando quando tudo estava escuro.

-Que horas são? 18:30!

Despertara com a sensação de que não eram apenas as horas que estavam erradas... Aquela conhecida mudança de humor repentina, e até então sem explicação, lhe pegara de surpresa enquanto andava pela casa tateando as paredes, procurando um interruptor que acendesse as luses também atrasadas.

Forçava sua falha memória a lembrar de algum detalhe do que podia ter-lhe deixado tão impaciente, algo havia acontecido... ou não havia.

- Ahhr!

Uma arfada de ar e tudo o que aconteceu veio rápido demais. De repente estava tonta e enjoada. Por alguns segundos o seu mundo parou para assistir o que havia acontecido enquanto dormia: O estranho de sempre havia voltando para mais uma de sua visitas noturnas...

Ela conseguia sentir como tudo aconteceu, via como se estivesse em tempo real... a lembrança de cada toque ainda lhe causava arrepios, o cheiro da pele ainda era aquele do qual lembrava, que lhe fazia respirar mais fundo como se pudesse guarda-lo dentro de si. Podia sentir os cabelos entre seus dedos, a pressão contra seu corpo. Podia sentir que ele estava ali de novo e por completo.

Algo lhe puxava para mais perto... gentil e ao mesmo tempo impaciente; apressado, mas não mudando o tempo entre cada um de seus movimentos, ainda lentos e seguros regidos pelas batidas fortes dos corações sincronizados. Algo havia mudado naqueles olhos, agora eles não tinham mais promessas, neles agora havia apenas o agora. Cada toque delicado da boca dele por seu corpo lhe lembrava de algo mais real, finalmente alguma coisa realmente dele.
Aos poucos... cada segundo que passava trazia consigo o que realmente havia acontecido... o sonho era real demais, bom demais para ser tão verdadeiro. Tudo agora parecia ter sido visto de uma janela, onde estranhos perfeitos se olhavam como se não restasse mais nada. Os toques antes sentidos agora lhe causavam repulsa, eram tão fora da realidade quanto tudo que andou acontecendo nos últimos tempos.

Sonho...

Apenas mais um capítulo do roteiro cheio de clichês...


"A paixão dos suicidas que se matam sem explicação." M. Bandeira

1º de Abril

Não existe arrependimento, tudo ainda está tão bem quanto era no começo, caminhando exatamente como foi planejado. Não existiram mentiras, nem há desconforto, nunca houve um jogo de palavras bem ditas. Não existiram inúmeras tentativas muito bem aceitas pelo próximo, logo... jamais existiu reciprocidade.

Não existiram meias palavras.

O que se passa ao redor não tem mais relevância... pois o que existe entre eles é bem maior. Os estranhos não influenciam a convivência diária, tudo é baseado na confiança e na cumplicidade.

Jamais existiram pendências... Não existe fim.

Que dia é hoje mesmo?

Dispensando as verdades fáceis.

Todos aqueles clichês... as mentiras bem ditas já não enganam mais. O que acontecia merecia ter um fim digno de uma grande história, daquelas que são acompanhadas diariamente pelo público fervoroso à espera de mais uma cena de beijo. Mas os melhores roteiros não terminam com "Foram felizes para sempre"... apenas mais um clichê.

Sobrou cansaço e hiperventilação. Taquicardia e hipotenção...

"Não se pode encher uma taça que já está cheia".*

Não existe mais espaço para o encantamento... e quanto ao espaço destinado ao fascínio... esse acabou, fazendo transbordar as horas que não passam, as decepções que se acumulam e o desejo fútil de querer por querer.

Knock



Quando tudo acaba no amanhecer...


Quando tudo acaba sem ao menos ter começado.

Quando os segundos do depois se tornam tarde demais.

- Saia. E ao sair apague as luzes, mas deixe a porta aberta.

Estava pendurado na maçaneta da porta:
"Entre sem bater".



Prognóstico


- É que eu ando contando mentiras deslavadas sobre isso tudo. Sobre o que eu sinto e sobre o que eu vejo. Não sinto nada, e por mais que eu tente ver tudo parece só vazio.

- Tudo está diante de você.

- Mas está sempre escuro e eu sempre estou só... A não ser por essa voz que insiste em tentar. Antes ela tinha vida, gritava comigo todos os dias... Depois se tornaram sussurros fracos, mas que sempre me diziam para olhar para frente, mas ainda assim eu não via. Agora são gemidos, ela agoniza pedindo por socorro... Mas tudo ainda está escuro demais e eu não a vejo.

- Não sou terapeuta, e seu problema não é em sua cabeça. São seus olhos, você está quase cego... Talvez você devesse tentar ver isso tudo por uma nova lente.

Eles são cegos.

De toda a perfeição que os olhos não vêem...

Dos olhos vistos tão de perto naquele passado tão recente... Naquele seu sonho do qual foi despertado para esta outra vida. Ele via seu rosto enquanto adormecia. Lia tudo que acontecia através das linhas imaginárias que ele havia criado para aquele momento, enquanto ela oscilava entre o dever e o poder.

Aquele olhar funcionava como um moedor que rasgava e triturava cada pedaço do flagelo que sobrara do seu coração. Onde cada parte viva ainda teimava em bater silenciosamente tentando voltar à dormir.

Ela nunca chegara a ver tão de perto o que tudo seria. Não permitiria tamanha aproximação. Desde que ele havia visto tudo que aconteceria dali em diante, havia ficado cego às demais coisas que só confirmavam que tudo pode mudar... mas o que pode mudar, também pode reverter. Seus olhos ainda não vêem desde o dia em que se olharam... e eles ainda continuam cegos.

Do palco


"Ai meu coração, esse é o ônibus deles, ele está aqui."

Ela dizia enquanto entravam...

Essa poderia, de fato, não passar de mais uma frase das centenas de fãs que existiam daquele lugar, todas agitadas para ver o que para ela era incomumente natural dele. Tantos gritos e olhares como se existisse mesmo uma disputa, onde quem levasse o prêmio, levaria também a fama tão cobiçada.

Nem havia ido aquele lugar para isso, nem sabia que ele, seu pesadelo de cada dia que despertava, estaria lá para assombra-la. O que deveria ser apenas mais uma noite incomum de domingo se tornara algo muito mais sólido, onde cada um de seus movimentos seriam notados pela plateia estranhamente posta em cima do palco e pelo conhecido de sempre que lhe olhava sempre que acreditava no não flagrante.

Ela saíra do seu conforto. De que valeria aquela pulseira - que agora parecia até incomodar, apertando seu pulso, como se devesse mesmo não está ali - quando ela não a faria chegar mais perto dele?

Desceu escoltada pelas amigas que tentavam lhe dar força e fazer tudo aquilo parecer natural. Aguentaria o show, até ele acabar. Dançar, dançar, dançar... Mas nada se comparava ao que ele fazia tão consciente quanto alguém que apunhala pelas costas.

Já havia durado demais, era hora daquilo tudo acabar. Porém faltava aquela música de melodia tão conhecia. Ela não deveria ter feito parte daquele repertório, era lenta demais, caia bem demais. Mas mais uma vez ela foi pega de surpresa, a noite ainda não estava perdida, ela havia ganhado a semana, talvez o mês... o ano?

Ele nem deveria está cantando aquilo, tudo encaixava perfeitamente. Mas como se não bastasse ainda existia aquele outro amigo, aquele que sempre tenta entregar/estragar tudo. Estragar as tentativas de esquece-lo entregando para quem aquela música estava sendo cantada.

"Ahhh..."
As amigas gritavam juntas.

Aquilo foi sim um coração... e foi para ela.

Hipoteticamente

- “E se o céu fosse rosa?”

Tão fora da realidade quanto as coisas que ele dizia enquanto ela tentava não adsorver. Coisas que fluíam nos seus ouvidos tão sólidas quanto fumaça... Coisas que ele dizia enquanto ela sabia que devia mandar ele se calar.

Todo dia brincado como se tudo aquilo não fizesse nenhum sentido, como se ela não rezasse todos os dias para ele não chegar mais perto. Desculpas agora não iam adiantar, tarde demais, pensasse antes de dizer exatamente tudo o que ela queria escutar.

Dia sim, dia não alguma coisa lhe arrancava um pedaço da certeza que ela tinha semanas atrás de que tudo já estava tomando seu lugar de origem. Mas a origem do seu problema chegara com ar de amizade, como se quisesse mesmo esse tipo de vínculo. Aquele tipo de conversa não era natural, não para pessoas como eles, não agora.

- “E o que você quer afinal?”

Com algum direito - e alguns goles a mais - ele pede o que para ela soou como música. Mesmo que aquilo não fizesse sentido nenhum, -“porque isso tudo agora?”. E -“não, você não pode”, ele não tinha esse direito, e nem se seu motivo fosse mesmo convincente ela cumpriria, da mesma forma que agora quebra outra promessa - de que não escreveria - agora mesmo. Quantas vezes ela havia visto o que agora ele brincava de dizer que não queria ver? Quantas vezes ela ainda veria? Ela não havia decidido, algo havia sido empurrado para dentro sem sua permissão.

- “E se o peixe se apaixonasse pelo Pardal?”

Hipoteticamente falando...

Sonho de um anjo

Era mais uma manhã comum, o Sol brilhava ultrapassando o pára-brisas e esquentando seus dedos ao volante. Os carros se moviam lentamente pelas avenidas abarrotadas de motoristas impacientes com o transito incomumente lento, e pedestres apressados para mais um dia rotineiro de trabalho. Ela escutava as músicas de sempre, fechada em seu mundo enquanto olhava os rostos das pessoas que passavam pelo outro lado dos vidros escuros do seu carro. Alguns deles se viravam para procurar o que as demais pessoas estavam olhando.

Mais adiante, uma multidão estava reunida para ver o que atrapalhara o transito. Sem entender muito bem o que estava fazendo, ela também foi atraída pelo o que ocorrera. Saiu de seu carro, de seu mundo fechado, trancou as portas e sem se preocupar em dificultar ainda mais a passagem dos outros carros, ela caminhou de encontro ao que ela vira agora ao longe... Um acidente. Normalmente ela não sentia curiosidade em ver acidentes, porém desta vez algo lhe empurrava a obrigando a seguir até o local exato onde estariam os feridos. Não foi preciso caminhar muito para ver as marcas que o acidente causara à pista. As marcas de pneu mostravam que alguém havia tentado frear para evitar colidir com os demais carros. Logo a sua frente aparecia o resultado desta tentativa... A estrutura do carro havia sido totalmente danificada. “Capotamento”. Ela cochichou para si mesma. Não queria chegar mais perto, aquilo não podia ter acabado bem, mas alguma coisa ainda lhe impulsionava.

Com o estômago revirando de ansiedade e a embriaguez pelo cheiro forte do flúido derramado ao chão, ela seguia para o que agora vira perfeitamente: Entre o metal retorcido e muito óleo havia alguém. Um homem estava completamente imóvel em meio as ferragens, senão pelos seus olhos assustados que se moviam rapidamente sem entender o que acontecera, saltando entre os médicos que o socorriam e os curiosos que se perguntavam como ele sobrevivera. Bruscamente seu olhar foi paralisado por algo que ele vira agora. Seu rosto foi de susto à alívio tão rapidamente que ela se perguntou se mais alguém havia percebido aquilo. Alguma coisa próxima a ela chamava a atenção do homem acidentado. Ela se virou para procurar o que poderia ter tirado todo o terror de seu olhar e por em seu lugar tanta candura quanto ela vira agora, mas ao procurar ao seu redor, não vira nada de novo além da mesma multidão de curiosos que estava lá até mesmo antes dela.

- “Eu sabia que você viria, eu sonhei com você. Eu sonhei com este acidente... Eu sabia que meu anjo viria para me salvar. Você chegou.”

Ela agora estava paralisada pelas palavras do rapaz que estendia as mãos em sua direção, tentando segurá-la como se não quisesse que ela fosse embora dali. A força que havia lhe levado até lá de alguma forma agora fazia sentido e se tornara mais forte do que qualquer outro pensamento seu naquele momento. Ela precisava socorrer aquele homem mesmo que aquilo não passasse de uma vertigem. Ao segurar sua mão percebeu que ele estava bem, havia força em seu aperto, e em seus olhos uma necessidade que ela ficasse.

-“Deus está com você.” Foi a única coisa que ela conseguiu lhe falar.

Ela ficou ao lado do homem durante todo o processo de socorro dos bombeiros. Ele segurava sua mão como se sua vida dependesse daquilo e a olhava com a devoção de quem vira um anjo que realmente lhe tivesse salvado a vida. Ela o acompanhou na ambulância até o hospital, onde ela pretendia deixá-lo após ter certeza de que ele se recuperaria. Os médicos estavam assustado com o fato dele ainda estar vivo já que o carro havia capotado e as pancadas quase não haviam deixado um lugar intacto onde coubesse uma pessoa ilesa.

- “Foi Deus”. Comentava um dos médicos que estavam durante o socorro.

- “Não, foi um anjo.” Lhe respondera o outro.

Para lembrar...

   Sentada na grama, sob os raios fracos do Sol que se moviam numa dança lenta conduzida pelas copas das árvores, ela via o tempo passar num ritmo tão constate quanto a dor que cada pulsação do seu coração agora lhe causara. O ambiente lhe lembrava o primeiro beijo.

Tudo convergia com tanta naturalidade que ela sentiu inveja da grama que recebia as folhas já caducas de bom grado, abraçando-as num aperto gentil. Ela procurava uma explicação para sua dor. Procurava seu abraço. Tudo que vira até agora não parecia fazer sentido. Ele se fora sem cumprir a promessa de amá-la para sempre. O destino traiu sua fé, pondo ele agora abaixo de seus pés descalços.

Ela lembraria dele para sempre, aquele conhecido de infância que agora tinha um olhar congelado no passado, que havia levado consigo seu futuro e seu chão. Ela não sentia raiva da sua fé traída, sentia raiva do Sol que raiva todos os dias, do arco-íris que ela vira no dia em que ele se despediu... “Com pode tudo funcionar normalmente sem ele aqui?”. Ela dava boas-vindas à sua dor, a receberia de peito aberto se essa era a forma de saber que ele estava dentro dela de alguma forma.

Sentada aos pés da arvore, agora ela podia sentir a atmosfera mudar sua pressão. As folha rodopiavam com se soubessem que havia algo diferente no tempo, pareciam correr procurando um lugar seguro onde a chuva não as alcançassem. As primeiras gotas vieram tarde demais, seu rosto já estava lavado pela tristeza que suas lembranças felizes lhe trouxera. A nova temperatura levara suas lembranças pondo em seu lugar o frio mórbido da solidão.

Agora deitada na grama, ela se sentia mais perto dele. Ela lembraria para sempre do mar que se abria em seus olhos todos os dias pela manhã, das declarações ditas em forma de canção assistidas pelo auditório lotado... Dos piercings combinados, dos abraços proibidos nos corredores da escola. Lembraria da profecia dita de que tudo começaria com um “oi” como aconteceu.

Cada gota parecia ácido, corroendo e apagando suas lembranças, tornando cada vez mais difícil lembrar do rosto dele. Ela rezava baixo para que o tempo parasse ali, não queria que a dor passasse, pedia que ele não se tornasse apenas um sonho... Rezando e pedindo ela adormeceu sob a chuva grossa,sobre a grama molhada, suja da mesma terra que agora o tocava.

“Me chame quando o pesadelo acabar”.

A novidade

Não dá saber em que ponto exatamente tudo desandou.

Para ela isso até demorou demais, ela estava acostumada a se sentir assim. Não adiantava dizer àquela menina que ela era melhor que isso. Desde quando ela se importa com o que os outros falam? E o que é a beleza afinal? Ela estudou pra ser desse jeito. E ela fez muito bem o dever de casa: “Vou deixar tudo com está”. Ela repetia para si mesma quando ele a olhava como se tivesse sim alguma coisa para falar.
“Onde está a razão daquilo que me diz para não desistir?”.
São como - irritantes - sinais que colocam o nome dele em lugares inesperados: nos créditos dos filmes, nos livros que ela lê, nos contos... Até na traseira de um caminhão ela já havia visto; é como se alguém cochichasse no seu ouvido “Lute!” Mas o mais perto que ela chegou de uma luta foi xingar a TV ou procurar uma pedra para jogar no vidro do caminhão. Ela já está cansada demais, não há mais força para lutar.

Na verdade ela nunca tentou, se entregou ao jogo dele. Deixou que ele fizesse tudo que queria, que lhe mostrasse tudo que achasse necessário para que ela soubesse que ela não passava de mais uma. Ele sabia que tinha o poder de lhe fazer mal, e não poupava esforços para mostrar o quanto fazia isso bem. Ela também era uma boa jogadora, mas para ela, ele infringia as regras, trapaceava. Então ela preferia não entrar no seu jogo baixo, se entregou ao seu próprio flagelo.

“”Quando a gente tá junto...” O que mesmo?”. Isso era uma música? Ele cantou isso mesmo? Estava bêbada demais para lembrar do que realmente tinha acontecido. -“Aconteceu, é sério?”. Perguntava à amiga que lhe confirmava: - “Eu acho que sim, vocês sumiram”. Ela tinha mesmo estado com ele. Ela se esforçava para lembrar de algum detalhe, mas sua memória falha demais lhe pregara outra peça. Ela não lembrava de quase nada. “Como aconteceu?”. Essa pergunta ficou sem resposta. Ela se negou que algo acontecesse naquele lugar movimentado, talvez por vergonha de aceitar ser mesmo só mais uma, então ninguém havia visto, mas claro, todos sabiam.

“Tudo bem, eu não sofro mais por esse tipo de coisa”. Ela agradece a Deus todos os dias por ser tão calculista. Principalmente agora que realmente tudo esta findado. Pelo menos para ela. “Vai passar, sempre passa”. Hoje isso soa como mantra na sua cabeça, enquanto aguarda o momento de se desvencilhar de vez do intruso que paralisou o tempo em que eles não estão juntos.
 
Blogspot Templates by TNB